A teorização aristotélica da retórica pode ser designada, como propôs Thomas Conley, de «problemática». Escreve este autor:
«chamamos ‘problemática’ à retórica de Aristóteles uma vez que a ‘persuasividade’ disponível varia consoante a natureza do problema em questão numa situação retórica» (Conley, T. M.,1990, Rhetoric in The European Tradition, Ney York/London, Longman, pp. 23-24).
Com efeito, é útil lembrar que Aristóteles define a retórica como «a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir» (1998: 1355b), definição que não deve ser dissociada do esclarecimento que se lhe segue: «é também evidente que ela [a retórica] é útil e que a sua função não é persuadir mas discernir os meios de persuasão mais pertinentes para cada caso» (ibidem).
Não deixa de ser estranho que tantos estudiosos da argumentação e da retórica, mesmo reclamando-se de Aristóteles, continuem a tratar de uma forma indiferenciada «finalidade» e «função». Na realidade, é preciso notar que a finalidade da retórica é apenas uma das possibilidades que deriva da sua função. Vejamos. Se eu tenho um problema e sobre ele quero decidir da melhor maneira, o que devo fazer senão procurar discernir? Por outro lado, este discernimento não é uma consideração teórica mas tem uma motivação prática, a saber, o poder lidar da melhor forma (não a perfeita, mas a possível) com o problema. Logo, no ato de discernir está implícito que eu estou a tentar avaliar o que deve pesar mais e menos tendo em conta a aplicação desse discernimento à especificidade do caso. Se o resultado desse discernimento é para ser aplicado ao caso, então ele é uma forma de persuasão e, antes de mais, uma forma de auto-persuasão que, por isso mesmo, pode também manifestar-se numa prática de hetero-persuasão. Não diz uma velha frase que para persuadir é preciso estar persuadido, que para convencer é preciso estar convencido? No entanto, estar convencido não é ter certeza no sentido de um raciocínio necessário. Significa antes que o caminho proposto nos parece o mais apropriado. Isso não se reduz a uma mera inferência resolvida pelo esquema de que de certas premissas decorre logicamente uma determinada conclusão, mas implica uma escolha das premissas consideradas como apropriadas para perspectivar o problema e, assim, propor uma forma de com ele lidar. Esse é, aliás, o papel da inventio, que consiste precisamente selecionar aquilo que se traz ao discurso para tematizar o problema de modo a tratá-lo apropriadamente. Ou como escreve Aristóteles, de «descobrir os meios de persuasão mais pertinentes para cada caso».
De qualquer forma, o importante é sublinhar que o discernimento que aqui é requerido não é realizado não em termos de verdade ou de falsidade, mas de ponderação e de verosimilhança. Que, em vez da palavra «certeza», surgem termos como «pertinência» sinónimo de «relevância». Ora, é a objetivação verbal da relevância que se dá, justamente, no discurso argumentado cuja estrutura salienta um ponto de chegada geralmente chamado «tese» e reforços justificativos designados por argumentos.
Pensada a partir do «discernimento» compreendemos melhor porque que é que em Aristóteles a retórica é argumentativa. E, o que é mais, estes reforços justificativos a que chamamos «argumentos» configuram um tipo de racionalidade na qual está presente o peso do raciocínio, o peso dos afetos e das emoções e o peso da pessoa do próprio orador. Com efeito, logos, ethos e pathos são considerados por Aristóteles como meios de prova retórica. Como escreve o estagirita na sua Retórica (1356a. Subl. nosso):
«Persuade-se pelo carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de que o orador é digno de fé» (ethos), «persuade-se pela disposição dos ouvintes quando estes são levados a sentir emoção por meio do discurso, pois os juízos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio» (pathos) e «persuade-se enfim pelo discurso quando mostramos a verdade ou o que parece ser verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular» (logos).
Não se trata, por conseguinte, de uma racionalidade formalizada ou idealizada segundo a a exigência do rigor ou da certeza, mas de uma racionalidade que considera os grandes eixos que influenciam os humanos quando estes têm necessidade de decidir em condições de incerteza. Uma vez mais Aristóteles é eloquente neste aspecto, desta vez numa passagem da sua Ética a Nicómaco:
«damo-nos, portanto, por satisfeitos se, ao tratarmos destes assuntos, a partir de pressupostos que admitem margem de erro, indicarmos a verdade grosso modo, segundo a sua caracterização apenas nos traços essenciais. Pois, para o que acontece o mais das vezes, com pressupostos compreendidos apenas grosso modo e segundo a sua caracterização nos traços essenciais, basta que as conclusões a que chegamos tenham o mesmo grau de rigor. (…). Na verdade, parece um erro equivalente aceitar conclusões aproximadas a um matemático e exigir demonstrações a um orador» (Aristóteles, 2009: 1094b. Itálicos meus).
Além do mais, os raciocínios analíticos são distinguidos por Aristóteles dos raciocínios dialéticos, a que o filósofo dedica o seu tratado intitulado Tópicos, e cuja utilidade descreve do seguinte modo:
«Prosseguindo, cumpre-nos enumerar e descrever as utilidades que se podem extrair deste tratado. Por três formas é útil: como exercício, nos encontros quotidianos casuais, e nas ciências filosóficas. Que seja útil como exercício é por si mesmo óbvio, pois que o domínio deste método nos capacitará mais para argumentar acerca do tema proposto. É também útil nos fortuitos encontros do dia a dia, porque, uma vez inventariadas as opiniões do vulgo, podemos confrontar-nos com ele no campo das suas próprias opiniões, e não no campo dos dogmas, que lhe são estranhos, deitando abaixo todo o argumento que não pareça bem fundamentado. Quanto ao estudo das ciências filosóficas, a possibilidade de trazer os argumentos pró e contra às diaporias levar-nos-á a descobrir com maior facilidade a verdade e o erro em cada caso. Outra utilidade ainda, quanto aos princípios primeiros de cada ciência: é impossível sujeitá-los a discussão a partir dos mesmos princípios da ciência particular em causa, posto que os princípios são os elementos anteriores a tudo o mais; estes devem discutir-se à luz e em virtude das opiniões prováveis relativos a cada um deles, e esta é a tarefa própria, ou mais apropriada, à dialéctica, porque em virtude da sua natureza indagatriz, ela nos abre o caminho aos princípios de todo o método» (100b-102a).
A dialéctica opera a transposição das características da racionalidade da comunicação retórica — que lida com opiniões prováveis — para uma situação de argumentação que se pauta pelo confronto e discussão de um assunto em questão por, pelo menos, duas partes com suposta paridade quanto à iniciativa discursiva. E, aspecto da maior importância, ela é movida por uma interrogatividade irredutível a qualquer metodologia.
A dialética surge em Aristóteles, por conseguinte, dimensionada de forma muito diferente daquela que vimos em Platão. Ela não é a via de acesso à verdadeira realidade: é o plano da discutibilidade a partir do qual se podem justificar como apropriados os caminhos indicados para tratar os assuntos em questão, ou seja, nos quais o questionamento e a interrogatividade permanece pairante para além de todas as respostas eventualmente dadas. Claro que podemos sempre prestar mais atenção a quem ganha e a quem perde, mas isso frequentemente acaba por obnubilar a natureza dilemática da problematicidade e ocultar a margem de incerteza que ela sempre carrega.
Depois desta longa digressão voltemos, então, à questão da relação em logos, argumentação e retórica.
Apesar da, na tradição filosófica racionalista, terem sido os ideais de rigor e a ambição pela certeza no conhecimento que vingaram — o conhecimento como solução — o facto é que no mesmo no berço do pensamento grego assistimos a uma delimitação do plano teórico e do plano prático. Se, no primeiro, se tratou de construir mecanismos que garantam a obtenção e a validação da certeza, postulando-se princípios lógicos como os princípios da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído e desenvolvendo todo um sistema de articulação do raciocínio necessário, no segundo foi assinalada a dimensão finita, optativa, aproximativa e ensaística que o pensamento exibe quando confrontado com as exigências práticas do agir e do deliberar.
Aristóteles, apercebeu-se que existia todo um domínio que, sendo perpassado pela contingência, se revelava como refratário à necessidade da lógica analítica mas que, no entanto, era incontornável na vida dos humanos e fundamental para a sua coexistência. Não foi, contudo, a racionalidade retórica que historicamente prevaleceu perante os ideais da certeza e do poder de domesticação da realidade que a lógica, mais tarde matematizada, prometia. Daí decorreu, em grande medida, não só o processo de secundarização e de desvalorização da retórica relativamente aos ideais que se concretizaram com o surgimento e com o desenvolvimento da ciência moderna, como também uma desvalorização do argumentativo, considerado como parente pobre do demonstrativo.
Sabemos, desde Aristóteles — da sua ideia de dialética e da sua teorização da retórica — que o combate ao que se torna dogmático só pode ser feito pela via argumentativa e por um retorno à interrogatividade que permite o acesso à discutibilidade; poder-se-ia, prudentemente, ter-se percebido que há sempre um processo de construção argumentativa do demonstrativo como forma de manter aceso — e com a sua imprescindível pujança e ingenuidade auroral — o espírito crítico-criativo que faz pensar porque se defronta permanentemente com o alternativo e o inimaginável. Mas o lema «saber para poder» e a força da secreta idealização de deificação humana venceram e conduziram a uma mitificação da ciência que, ao contrário da sua promessa libertadora, reduz cada vez mais o humano ao resquício obsoleto que a autonomia dos sistemas hão-de um dia dispensar totalmente, tal como, aliás, aconteceu com a filosofia, vista pelo positivismo como um resíduo destinado a desaparecer e a deixar de suscitar interrogações para as quais a ausência de soluções era afinal, a marca de nossa humanidade.