(Post 35) Assalariados descartáveis

A palavra “descartável” tornou-se, nos nossos dias, aplicável a uma das dimensões da precariedade laboral que atravessa o mundo do trabalho. Ela:

  1. reforça a ideia de que ninguém é insubstituível; 
  2. enfatiza a tendência de formatar o trabalho como conjunto de tarefas executáveis e aferíveis por resultados observáveis e mensuráveis, tarefas essas que devem, portanto, ser o menos possível dependentes de quem as executa (ou seja, que preferivelmente devem ser o mais impessoais o possível); institui-se assim um ideia de formação que fica reduzida a um adestramento para executar funções;
  3. significa que a procura por emprego excede em muito a oferta, facto que contribui para que seja fácil, a quem emprega, substituir rapidamente funcionários ou, então, optar por políticas de rotatividade em que o princípio é sempre o curto prazo, o termo certo e a não criação de vínculos ou compromissos para com os trabalhadores;
  4. a ideia de “descartável” anda a par da degradação moral do humano, privilegiando uma visão instrumental da força de trabalho em detrimento da valorização da empatia e do trabalhador enquanto pessoa;
  5. é concomitante da substituição do humano pela automação e pelas tecnologias que lhe estão associadas (as quais consumam a ideia de executar tarefas de uma formas eficaz e impessoal);
  6. instala o medo e a insegurança, esvaziando poderes reivindicativos, estimulando a subserviência e dificultando qualquer projeto a mais longo prazo;
  7. gera, por parte do trabalhador, a resistência em criar vínculos e a investir num trabalho que, tendo horizontes precários, passa a ser visto de uma forma meramente instrumental, um modo de ganhar dinheiro e assegurar a subsistência; 
  8. transforma a luta pela subsistência numa tarefa competitiva em que o outro surge como uma ameaça, estimulando pouco a cooperação, o espírito comunitário e a solidariedade, fomentando, ao invés, o individualismo e o “cada um por si”;
  9. conduz, finalmente, à tentativa de perseverar condições de miséria como se fosse “uma sorte” ter um trabalho e uma fonte de receita que a todo custo há que procurar manter. É uma forma de aprisionamento assente na naturalização da precariedade e no roubo da esperança no futuro.

(Post 34) Ventriloquismo e voz própria

A repetição e a insistência são das mais poderosas estratégias persuasivas. Num primeiro momento a mensagem invade o ouvido e vai-se introjetando no corpo à revelia do querer ouvir ou do voluntário prestar atenção dos indivíduos. Depois ganha consistência ontológica constituindo-se numa espécie de ressonância que comanda nos momentos em que a falta de tempo ou o incómodo da não-resposta cruza a necessidade imediata de eventuais decisões práticas. Com efeito, como não podemos estar sempre a parar para pensar, nem temos a possibilidade de estar a colocar tudo sempre em dúvida, o lema da ação acaba por ser: seguir em frente. Ora é justamente neste «seguir em frente» que as ressonâncias se tornam nossas guias. Há aí todo um prévio irrefletido pronto a vir ao pensamento e ao discurso, um recurso ao já dito e a lugares comuns, ao habitual e ao familiar, que nos permite responder em tempo útil e de uma forma presumivelmente não desfasada com o que é aceite, porque habitual. O ventroloquismo é de facto um recurso essencial para a inclusão social, para a criação de um sentimento de pertença a uma comunidade e para a promoção de uma convivencialidade baseada em elementos partilhados e supostamente comungados pelas pessoas «normais». O reverso do ventroloquismo é a fragilidade de um ser exposto à eficácia dos mecanismos ideológicos que o fazem tomar por suas ideias que ele próprio apropriou por sujeição a parâmetros de modos alheios de considerar a realidade e o seu significado.
Sei, pois, de há muito, que começamos sempre por ser ventríloquos, habitados pelos jogos e pelos usos de uma linguagem que não inventámos, por um falar anónimo que julgamos ser nosso, mas que essencialmente replica a transmissão normalizada de uma visão do mundo. Sei que, ao contrário do que geralmente julgamos, não é apenas, nem em primeiro lugar, a força do pensamento aquilo que comanda a ação, pois as ações em que nos vemos envolvidos antes de sobre elas refletirmos constituem a raiz material que conduz a modos de dizer, enquadrar e justificar verbalmente as nossas opções práticas.
Arrancarmo-nos a este ventriloquismo constitutivo é uma tarefa a que poucos dispensam o seu esforço. Sim, é certo, todos gostam de sentir que são eles próprios, mas esta busca pela “propriedade” que seria a nossa é apenas caminho, nunca ponto de chegada. E é por isso que aqueles que apenas encontram conforto no ato de chegar a conclusões seguras, lidam mal com a incerteza, com a ausência da necessidade lógica, com a pluralidade dos possíveis e com o aberto do “em questão”. É também por essa razão que descartam como ociosos os esforços dos ensaios metafísicos. Não se preocupam com os efeitos de arrasto em que a linguagem os envolve e o seu foco é pragmático: tirar partido das situações tal como elas surgem sem se deterem em juízos rígidos e deixando de lado qualquer sentimento de culpa, pois “o mundo é o que é e não fui eu quem o criou”.
Outros há para quem a questão do “ser-si-próprio” é fulcral. Alguns vivem na ilusão de saberem muito bem quem são. Outros renovam frequentemente a esperança de chegarem a saber, repetindo o jogo da descoberta de que não sabiam quem eram, mas, agora, conseguiram chegar lá. Volta e meia perdem esse ponto de chegada e retomam o caminho até chegarem, com convicção redobrada, a um “agora é que é”. Outros, dando-se conta de que ali existe um padrão circular, uma espécie de eterno retorno, acabam por aceitar que se trata de uma aprendizagem infinita, um processo com produtos, mas sem produto final, um caminho com percursos, mas realmente não susceptível de leituras teleológicas.
Pela minha parte vejo no imperativo do “ser-si-próprio” uma condição de busca cujo exercício constitui a própria experiência do viver: uma tensão susceptível de ser vivida com intensidades variáveis, correspondendo o nível zero de inquietação a um estado de dormência (e também de encantamento ingénuo) e o nível mais elevado a uma postura alerta e vigilante que pode até roçar a loucura enquanto instância definidora desse efeito homogeneizador de distância que permite classificar algo como “normal”.
De qualquer forma, fazer ensaios e tentativas para diminuir a força da condição ventríloqua, fazer surgir um processo de apropriação seletiva através do qual podemos sentir que as nossas opções estão presentes no processo de triagem inerente a qualquer discurso, isso, já é uma conquista considerável. O primeiro passo é o de compreendermos que, mais do que falarmos, somos falados e habitados por um tecido interdiscursivo que nos aguarda à nascença e ao qual iremos dar continuidade. De facto, primeiro continua-se, depois começa-se, embora tenhamos frequentemente a ilusão do contrário. Mas não são todos os que começam e muitos daqueles que o fazem desistem aos primeiros passos. Baixam os braços quando se apercebem dos perigos da barreira da descontinuidade, dessa barreira que, uma vez transposta, não tem regresso, pois após a transpormos nunca mais voltamos “os mesmos”: não há como ignorar (embora haja muitas maneiras de procurar esquecer ou de atenuar) aquilo que vimos e que talvez preferíssemos nunca ter visto.

(Post 33) A importância pedagógica do modelo de Toulmin

Várias aplicações do modelo de Toulmin são uma boa ilustração da mais-valia que este esquema pode ter em termos pedagógicos para ajudar os alunos a perceberem como se processa a estruturação justificativa do raciocínio.
De notar, também, que o esquema de Toulmin permite definir cinco tipos de falácias: ausência de razões (ou dados), razões (ou dados) irrelevantes, razões (ou dados) deficientes, alegações sem garantia e falácias da ambiguidade.
Assim, do ponto de vista pedagógico, este esquema proporciona não só um modelo para disciplinar o raciocínio argumentativo como, ainda, para avaliar a sua força ou «sonância» (soundness).
Mais do que a transposição «geométrica» dos discursos nas categorias touminianas, o que é interessante neste esquema é que ele focaliza a organização do raciocínio e permite perceber as suas subtilezas e complexidades, pontos fortes e fracos. E coloca-nos no plano de uma normatividade não necessariamente necessária porque articula o campo independente com o campo dependente. Ou seja, não fecha o raciocínio em si mesmo, mas abre-o à discutibilidade. E isso parece-me pedagogicamente muito relevante.
Há ainda outro aspeto de valia pedagógica no modelo de Toulmin: é que ele diz que «não basta alegar, também é preciso justificar». Isso carrega uma proposta de civilidade argumentativa (ou seja, procedimentos cuja racionalidade é não dispensar argumentos na fundamentação das alegações, nem ser surdo diante de argumentos apresentados).

(Post 32) Terapia Conversacional: princípios e prática

Introdução
Alguém disse que vivemos num mundo obeso de informação, mas carente de sentido. E, a esta acertada ideia, acrescentou uma outra: a de que a inflação acelerada da comunicação é exponencialmente proporcional ao aumento da solidão.
O que da invocação destas ideias se destaca são os termos «sentido» e «solidão». Duas palavras heuristicamente poderosas para nomear um núcleo problemático que remete para algum do mal-estar que se verifica nas sociedades atuais e, seguramente, para muito do mal-estar que atravessa a vida de muitas pessoas.
O conceito de terapia conversacional, que aqui deixo a imaginação conceber, como todas as terapias que procuram fazer abordagens holísticas e integrais, tem no seu centro a aliança entre a categoria de sentido e a noção de equilíbrio. Assume, por outro lado, que do ponto de vista do conteúdo, esta aliança está sujeita à historicidade do tempo. Longe de ser uma essência cristalizada, a aliança entre sentido e equilíbrio tem, antes de mais, uma dimensão existencial marcada pela epocalidade, pela contextualidade, pelo carácter situado da vida e pela própria singularidade de cada pessoa. É por essa razão que ela tem de ser trabalhada e conquistada. A terapia conversacional foi desenhada para acompanhar, facilitar e desenvolver os esforços de equilibração assentes na procura de sentido e de nexos, dando ênfase aos efeitos terapêuticos que esta demanda envolve.
Na medida em que se articula com uma visão do mundo em que vivemos, a terapia conversacional nunca é neutra, uma vez que interpretar o mundo de certo modo é sempre tomar uma posição. No entanto, no quadro terapêutico, estas tomadas de posição não são dogmáticas. Estão abertas, também elas, à interlocução, à discussão e à coconstrução, podendo converter-se num objeto partilhado de investigação.
A falta de um sentido que permita viver a vida de modo mais compacto, confiante ou simplesmente sereno, conduz, frequentemente, a sensações de angústia, a sintomas depressivos e a sentimentos de solidão. Estes últimos tornam-se ainda mais acentuados com uma diminuição das práticas conversacionais causada, por um lado, pela indisponibilidade crescente das pessoas, sempre ocupadas e aceleradas e, por outro lado, por um modo de vida cada vez menos disponível para formas de entreajuda comunitária e solidariamente dimensionadas.
Ora a conversação, pelo menos naquela em que se torna possível dialogar com problemas de um foro mais idiossincrático e pessoal, sempre teve efeitos equilibradores. Pelo contrário, a diminuição do espaço para tais interlocuções e a dificuldade em conseguir satisfação — nomeadamente em termos do nosso próprio crescimento e de reflexão sobre o seu percurso— com a qualidade das conversas que temos uns com os outros, tem conduzido ao aumento do sentimento de solidão, a uma maior dificuldade na articulação do sentido e, por conseguinte, a estados mais desorientados que se traduzem em mal-estar existencial.
A terapia conversacional parte deste diagnóstico societal e cria um espaço que faz da conversação uma oportunidade de aprendizagem para combater a solidão, a desorientação existencial e a carência de partilha. Mas, também, e não menos importante, para apropriar e expandir as suas potencialidades ou dotes tantas vezes em dormência.
Por isso a terapia conversacional pode ser considerada tanto como um espaço de hospitalidade, como um lugar de enriquecimentos e de aprendizagens que, sendo equilibrantes, se revelam também nos seus efeitos terapêuticos.

1. O que é?
A terapia conversacional parte de uma premissa simples: a de que a possibilidade de conversar sobre as suas preocupações ou problemas (procedendo assim a uma externalização), bem como a de refletir em conjunto sobre o que perturba, são fatores que contribuem para o equilíbrio e o bem-estar. Por isso, neste quadro terapêutico, descarta-se o tradicional binómio doença-cura e valoriza-se a disposição para a busca no sentido de operar transformações que permitam superar estados globais indesejados. Noutras palavras, que produzam equilíbrio e bem-estar.
Para esse bem-estar — entendido como um processo ativo, metamorfo e dinâmico de equilibração integral e não como um estado adquirido — contribuem, na prática, essencialmente três aspetos.
a) Em primeiro lugar, gera-se uma relação empática de proximidade estabelecida pela disponibilidade do terapeuta para ouvir. Ser escutado tornou-se, nos nossos dias, um bem escasso. Receber atenção e cuidados através da conversação tem um valor afetivo que, por si mesmo, é algo que contribui positivamente para o bem-estar.
b) Em segundo lugar, conversar e interagir através da palavra com alguém que lhe presta atenção ajuda a ordenar as ideias, combate a desorientação existencial e revela-se eficaz para localizar e equacionar as preocupações que provocam mal-estar ou instabilidades de vários tipos. Conversar sobre assuntos que nos perturbam resulta frequentemente numa redução do stresse, num aumento de tranquilidade e, por conseguinte, numa maior capacidade para lidar com eles.
c) Em terceiro lugar, conversar implica uma partilha que ajuda a combater a solidão e, por consequência, o desencantamento e a tristeza que dela frequentemente decorrem. Este efeito torna-se ainda mais intenso na medida em que, no quadro da terapia conversacional, o único modelo de que se parte reside na própria singularidade de cada um e nas potencialidades particulares que cada ser humano pode encontrar dentro de si para alcançar equilíbrio.

2. Prevenir a saúde a partir do bem-estar
A terapia conversacional não está direcionada para tratar problemas de saúde em sentido tradicional. Mas assenta, todavia, na convicção de que conseguir alcançar equilíbrio e bem-estar é algo de decisivo para prevenir problemas de saúde.
No quadro da terapia conversacional parte-se do princípio de que podemos sempre lidar melhor com aquilo que se passa de perturbador na nossa vida. Nesse sentido, o essencial, deste ponto de vista, não são queixas sobre o que nos acontece, sobre o que somos ou sobre como estamos mas, antes, aquilo que conseguimos fazer com tudo isso que nos envolve, ou seja, a descoberta da caminhos pessoais para gerar equilíbrios e bem-estar, potenciando assim maior tranquilidade e aumentando a qualidade de vida e as defesas no campo da saúde.

3. Alguns princípios da terapia conversacional
O bem-estar, tal como é concebido no quadro da terapia conversacional, não pode ser prescrito por receita. Ele é um fruto de um trabalho que ninguém pode fazer por nós. Por isso o terapeuta é alguém que acompanha o percurso dos seus interlocutores. Caminha ao lado deles, escuta as suas narrativas e faz da posição de escuta e de interação que ocupa um ponto a partir do qual contribui para incentivar processos de aprendizagem levados a cabo pelos próprios esforços de quem quer ultrapassar o seu mal-estar.
Outro dos princípios da terapia conversacional é que cada um deve ser o especialista da sua própria vida. Nesse sentido, ele promove a autonomia e não a heteronomia, o espírito aberto e não o dogmatismo, o livre exame e não a deferência que subjuga e nos torna subservientes. Por isso valoriza o autodidatismo baseado no valor da experiência da vida de cada um e da disponibilidade de com ela apreender.
Saber sentir-se, compreender-se, descobrir-se e crescer são, a par da confiança e do autocontrolo valores fundamentais desenvolvidos neste tipo de terapia.
Importa também dizer que a terapia conversacional não é algo que se restrinja a uma abordagem dos problemas de cada um em termos meramente individuais. Cada ser humano vive no mundo e é diretamente influenciado por ele. Compreender o mundo que nos rodeia, entender as causas da desorientação de alguém a partir de quadros mais amplos e complexos que os do indivíduo é uma das características da terapia conversacional.
Com efeito, ela considera que há uma articulação estreita entre a relação consigo mesmo, a relação com o mundo e a relação com os outros e que apenas a consideração conjunta destas dimensões permite que o sentido seja abordado de um ponto de vista holístico e, assim, adquira efeitos terapêuticos como, por exemplo, a redução da ansiedade.
Assim, se a terapia conversacional se centra na pessoa, nem por isso ela trata os problemas das pessoas como exclusivamente individuais. A maior parte dos problemas que são vistos como privados, ou seja, da exclusiva responsabilidade do indivíduo, remetem para condições sistémicas que vão muito para além dos poderes e responsabilidades individuais. Compreender isso, tal como entender como se processa a construção social da realidade, é um passo fundamental para mitigar a falta de auto-estima, a desorientação e o sentimento exacerbado de culpa que tantas pessoas carregam, tolhendo-as e tornando a vida muito penosa e sem alegria.
A impressão de que se carrega o mundo às costas conduz a um desgaste prejudicial. Saber situar-se no mundo de uma forma equilibrada implica conseguir discernir entre aspetos cujos constrangimentos não podemos controlar e aspetos em que a nossa intervenção se revela significativa e importante. A falta de uma posição balanceada entre as exigências com que nos defrontamos leva a extremos que não são saudáveis e que, ora provocam uma pressão e uma ansiedade excessivas, ora nos fazem cair num desleixo que diminui o amor próprio.
A terapia conversacional valoriza também a capacidade de iniciativa como fator de equilíbrio. No mundo de hoje, a sociedade de consumo bombardeia-nos com tantas ofertas que tendemos a escolher o que nos é dado e a não procurar interesses realmente próprios, ou seja, com os quais nos sentimos confortáveis. Com efeito, o apelo consumista descentra-nos, aliena-nos e esvazia o poder da auto-suficiência. Estamos constantemente a moldar-nos a formas que não condizem com o nosso ser, o que nos faz muitas vezes sentir num colete de forças. Por outro lado, quando dirigimos exclusivamente o olhar para o exterior ao pro- curamos soluções, esquecemo-nos de que a adaptação ao mundo é sempre muito mais harmoniosa quando vai ao encontro das nossas potencialidades e características próprias. Aprender a conhecer-se é um fator decisivo para uma relação equilibrada com o mundo, ou seja, para substituirmos a sensação de opressão pela de pertença. Mas essa aprendizagem requer um tempo diferente do tempo vertiginoso das notícias e dos acontecimentos. Por isso, ser capaz de desacelerar e de modificar o habitual sentido utilitário com que queremos conferir sentido às nossas ações é um caminho que a terapia conversacional deve seguir.
É importante ser sério, mas é também importante saber rir. Ser capaz de humor é um elemento decisivo para uma relativização que liberta e temperar a seriedade com a capacidade de brincar ajuda a tornar mais leve o nosso estar no ser e mais sorridente o nosso ser no estar.
O humor é libertador na medida em que permite romper com a certas formas de compulsividade obsessiva que tendem a fazer-nos concentrar numa negatividade para a qual não vislumbramos alternativa. Essas petrificações no lado pesado e desalentado da vida funcionam por vezes como prisões de que as pessoas não se conseguem libertar. A sua vida torna-se num permanente e sofrido arrastar dos dias. Amputadas de esperança no futuro, as pessoas veem-se confrontadas com a ausência de sentido na vida quotidiana. Tudo parece vão e sem significado. Tudo parece casuístico e avulso. Tudo parece esparso e caótico. Nada parece acolhedor ou possui valor suficiente para desencadear o nosso apego. O humor permite em muitos momentos estilhaçar as cristalizações depressivas porque liberta para modos de ver que não éramos sequer capazes de considerar e ativa a imaginação que é uma das faculdades mais importantes para remover as grades que, sem termos consciência, construímos em torno de nós mesmos.

4. Características da conversação terapêutica
As pessoas que se deslocam a uma sessão de terapia conversacional fazem-no porque sentem mal-estar com a vida e porque esse mal-estar lhes provoca sofrimento. Uma das funções da conversa terapêutica é remontar das narrativas que as pessoas efetuam à identificação e à formulação explícita dos problemas que lhes subjazem. Neste sentido, a separação entre o plano das vivências concretas e o plano do desenho mental dos problemas, a diferenciação entre a pessoa e os problemas, é considerada uma via de acesso para encontrar caminhos que permitam lidar melhor com o sofrimento.
Na conversação terapêutica é usual fazerem-se pontos da situação sobre a própria conversa. Com efeito, é importante verificar se a conversa está a ser produtiva, se deve ser aprofundada, se deve derivar para outros aspetos ou se há outros temas ou caminhos pelos quais importa seguir. O terapeuta, qual parturejador, está assim atento ao desenrolar da conversação e procura que esta se dirija ao que realmente interessa, ou seja, ao que contribui para um esclarecimento libertador e desbloqueador de dimensões oprimidas, recalcadas ou simplesmente perturbadoras.
A conversação que se desenvolve na terapia conversacional tem em consideração a dimensão intelectual, afetiva e cultural dos interlocutores, uma vez que é sempre preciso dimensionar a interação discursiva de acordo com o caso concreto com o qual o terapeuta lida.
A identificação e a descodificação dos universos afetivo-mentais de cada um, com as suas referências específicas, seus pré-construídos culturais, suas crenças, convicções e valores é uma das tarefas mestras do terapeuta conversacional. Apenas com base num quadro compreensivo bem delineado poderá a interação ser produtiva e bem orientada. Por isso se pode comparar o terapeuta conversacional a um hermeneuta que sabe situar o discurso nos contextos em que as palavras ganham um sentido forte e relevam um profundo sentido pessoal e existencial. Abeirar essa riqueza significativa é uma das condições de possibilidade da própria função terapêutica do discurso. A chegada a este núcleo intenso é o que permite diferenciar aquilo que são conversas normais e, sem dúvida, gratificantes — por exemplo entre amigos ou familiares — das conversações ocorridas no quadro da terapia conversacional, as quais devem ser vistas com um caminho de descoberta marcante para a superação do mal-estar.

5. A equilibração como processo
Como já anteriormente se disse, a terapia conversacional não privilegia o conceito de cura mas, sim, o de equilibração. Com efeito, o equilíbrio é fruto de uma conquista que implica aprendizagens e atenção continuadas. Dito de outro modo, o equilíbrio é um processo aberto e não um produto. Ele depende não só de fatores em constante variação e metamorfose, como está relacionado com elementos contextuais e situacionais que são, também eles, mutáveis.
Para os processos de equilibração contribuem vários fatores. O mais decisivo é capacidade de aprofundar o conhecimento de si mesmo. Saber escutar o corpo, conhecer o modo como somos afetados por certas coisas, perceber as causas que despertam em nós uma sensibilidade mais intensa (podendo mesmo causar descontrolo), tomar consciência do ciclo das nossas reincidências peculiares, compreender o que está na base da transformação das nossas disposições, conseguir antecipar, através da identificação de certos indícios, o que se está a passar e para onde estamos a caminhar — tudo isto é essencial nos processos de equilibração.
Outros fatores importantes são, por exemplo, o modo como aplicamos o nosso autoconhecimento a cada situação, a flexibilidade lúdica que deve acompanhar essa aplicação e a capacidade relacional desenvolvida de modo a proporcionar momentos de encontro.
Para finalizar, importa sublinhar que o conceito de equilibração deve ser interpretado dentro de uma escala gradativa. Dito de outro modo, as aprendizagens feitas não nos dão soluções definitivas mas conferem-nos, contudo, uma maior experiência. As pessoas com uma experiência mais aprofundada, ampla e consolidada naturalmente têm maior facilidade em lidar com os seus problemas do que aquelas cujos processos de aprendizagem são ainda escassos é pouco desenvolvidos.

6. A amplitude das formas de expressão na terapia conversacional
A terapia conversacional baseia-se na troca que se estabelece entre dois interlocutores com papéis diferentes e nela são importantes quer os aspectos verbais, quer os aspetos não verbais.
Além do mais, a interação conversacional não parte obrigatória ou exclusivamente de meios de comunicação discursivos ou de narrativas pessoais, podendo acolher formas de expressão diversificadas, com ênfase, por exemplo, na dimensão artística: um poema, uma música, um filme, uma notícia, um acontecimento, etc., podem ser pontos de partida para trilhar caminhos terapêuticos.
Longe de aspirar a racionalizações, a terapia conversacional não considera que a velha dicotomia entre a razão e as emoções conduza a formas de integrais de equilibro. Pelo contrário, na perspetiva desta linha terapêutica razão e afetos são vistos como inseparáveis. Por isso considera que a inteligência, para ser humanamente significativa, é também sempre emocional e que, em vez de recalcar a dimensão intuitiva e a considerar como incerta e perigosa, o importante é desenvolvê-la e aprender a lidar com ela. O ser humano é um ensaio temporal em constante aventura de reformulação.
Importa notar, a este propósito, que, do ponto de vista da sua criação e da sua articulação, a emergência de conceitos está sempre ligada a propósitos relacionados com o bem-estar, traduza-se este num aumento de segurança, num apaziguamento de medos, numa ordenação que tranquiliza ou numa compreensão que sossega.
O campo da filosofia tradicional está, aliás, cheio de exemplos da finalidade (ainda que não exclusiva) afeto-existencial da criação de conceitos. Com efeito, pensar em ideias como «fundamento último», o «originário», a «ausência de pressupostos», a «certeza indubitável» ou «o absolutamente garantido» mostra-nos que a precariedade existencial, a dissonância entre o homem e o mundo, o sofrimento com uma falha ontológica que coloca sob o signo da estranheza a nossa pertença e inclusão no mundo, estão na base de uma busca de segurança e de harmonia que, entre outros modos, se codifica através de conceitos e modos de pensar e interpretar.
Do mesmo modo, a busca obsessiva pela certeza e pelo controlo tem no seu reverso a imagem de um homem que se debate cronicamente com a falta de certeza e de controlo e que lida mal com isso. Sabemos, aliás, que a própria ciência moderna se desenvolveu não para uma exclusiva satisfação da curiosidade mas, essencialmente, como o desenvolvimento de instrumentos de poder humano: conhecer para dominar, conhecer para ter o poder de manipular, conhecer para antecipar e prevenir, conhecer para assegurar. Os termos falam por si no modo como ligam a intencionalidade existencial, na sua vertente emotiva e afetiva, com a aparente neutralidade e independência das criações conceptuais racionais que naquela está imbricada.

7. Remover o lixo e escapar à avalanche da quantidade
Referiu-se anteriormente que cada um deve ser especialista de si próprio. Esta afirmação não significa apenas que é indesejável alimentar dependências que aumentem a nossa heteronomia mas é, também, um alerta para as visões fragmentadas da realidade.
Como se sabe, a fragmentação dos conhecimentos é a condição da especialização e ninguém pode negar que os especialistas sejam eficazes na sua pequena ilha de especialização.
Existe contudo um duplo problema no recurso aos especialistas: o primeiro ocorre quando o nosso problema é global (ou seja, multidimensional) e, para nele se avançar, é preciso articular as partes e o todo, quando é preciso ver não só a árvore como também a floresta. Com efeito, o círculo hermenêutico é essencial para a produção a apropriação do sentido e para se ter uma perspetiva global, ou de fundo, sobre os problemas. O segundo problema é que ao recorrermos a especialistas — o que em muitos casos é perfeitamente justificado e aconselhável — colocamo-nos frequentemente numa posição de impotência e de ignorância (e também de preguiça) perante problemas relativa- mente aos quais não deveríamos abrir mão enquanto decisores últimos, na medida em que, mais importante do que tomarmos decisões tecnicamente avalizadas é tomarmos posições relevantes, significativas e que nos fazem sentir mais compactos e confiantes. Neste sentido pode contrapor-se uma certa «estupidez natural», ou seja, uma aptidão mais ou menos intuitiva e natural para lidarmos com os problemas comuns com que nos defrontamos sem delegarmos as nossas decisões aos especialistas e ao «técnicos», à tendência generalizada que, fazendo-nos sentir simultaneamente responsáveis e tementes da ignorância nos co- locam inapelavelmente nas mãos dos especialista, tornando-nos de- pendentes da sua autoridade e desautorizados perante as nossas próprias capacidades.
Este é um aspeto fundamental do ponto de vista da terapia conversacional: ela não só não pretende criar qualquer tipo de dependência — e por isso a avaliação das transformações e dos progressos que possam ocorrer no âmbito das sessões terapêuticas tem sempre de ser realizada autonomamente por quem as frequenta —, como procura alargar o espectro das competências pessoais generalistas.
Na realidade, e não apenas em sentido figurado, vivemos numa sociedade produtora de lixo. Os imperativos do consumo e do poder levam a que se esteja sempre a inventar sedutoramente aquilo de que não precisamos e a converter o supérfluo em necessidade. Passa-se a vida a transformar e a substituir aquilo que deveria ser feito para per- durar. Vive-se freneticamente para o excesso e a diversificar o que já é satisfatório e suficiente. O capitalismo e o consumismo vendem a inovação e o empreendedorismo como a alma do negócio. Mas a vida não é um negócio, embora hoje muito daquilo que é nos apresentado como problema seja, antes de mais, uma estratégia para vender soluções e meios tecnológicos.
O que anteriormente se disse coloca-nos perante uma questão decisiva: a de se ser capaz de discernir entre os problemas com uma dimensão existencial profunda e significativa, de todos aqueles que só existem pelo apelo consumista, colocando-nos numa roleta artificial de identidades. A desintoxicação da sedução consumista não é uma tarefa nada fácil, mas conseguir trilhar alguns passos nela tende a fazer-nos encontrar um novo, mais simples e natural eixo para a vida.
Para a terapia conversacional é importante que as pessoas se desatulhem de todo o lixo que as intoxica, pois de outra maneira, a força da expropriação é sempre mais forte do que o esforço de apropriação de si mesmo. Neste sentido, deve ser desenvolvida uma nova atitude sobre as possibilidades. Se, no âmbito do frémito causado pelo vórtice do novo e das novidades, há uma atitude prévia favorável perante tudo que se torna possível, a postura reflexiva a desenvolver para contrariar esta atitude é a de saber dizer não a possibilidades cujo contributo seja dispensável e mesmo indesejável. No fundo, trata-se de construir uma sabedoria capaz de aceitar e de lidar com as limitações que a nossa finitude nos impõe e não tratar fugir dessa condição através de deificações que acabam no vazio existencial.
Dito de outra maneira, a assepsia mental e a reorganização da ecologia mental tem de se libertar do «quanto mais, melhor» e inverter a ideologia que subjaz a esta equação. Saber selecionar o qualitativamente relevante no imenso mar do quantitativamente irrelevante é uma aptidão essencial nos dias que correm. O lixo e o supérfluo intoxicam, tolhem o pensamento e escravizam as emoções. Mais precisa- mente, impedem o pensamento enquanto iniciativa significativa e as emoções enquanto expressão de liberdade. Além do mais, a intoxicação que o lixo produz faz perder o sentido comunitário em detrimento de um individualismo que aprofunda a solidão e que torna cada vez mais longínqua a proximidade que pode ser gerada por conversas genuínas e carregadas de empatia. Conversas que criaram laços e não apenas conexões. Que geram comprometimento e promessa e não instrumentalizações e intermitências que piscam ao sabor das conveniências unilaterais.

8. Notas finais sobre o terapeuta conversacional
Como dissemos anteriormente, uma conversa com os amigos, com os familiares ou com pessoas que prezamos, podem ser muito produtivas e geradoras de bem-estar. Do mesmo modo, a convivencialidade pode revelar-se muito importante nos processos de equilibração das pessoas. No entanto, não devemos confundir os resultados do trabalho do terapeuta conversacional com os bens anteriormente referidos.
Em primeiro lugar, a condição de exterioridade é uma vantagem no que diz respeito à qualidade da escuta e acuidade das interpretações que dela decorrem. A familiaridade de quem nos é próximo tolda muitas vezes a capacidade de identificar atentamente a natureza dos problemas com que são confrontados. É frequente associar esses problemas ao feitio da pessoa e ponto final. Acontece também, frequentemente, que a expectativa de quem já conhece a outra pessoa faz com que não se seja capaz de ver para além disso, ou seja, do já esperado. Por outro lado, a disponibilidade é muitas vezes inexistente, uma vez que há sempre afazeres que nos esperam na azáfama dos dias.
O terapeuta conversacional, ao invés, está disponível para a interlocução. É certo que essa interlocução se processa de uma forma intermitente — ou seja, através de sessões que entre elas têm lapsos temporais —, mas nem por isso deixam de ter uma linha de continuidade ou um fio condutor. Mais ainda, o tempo entre sessões pode ser importante para clarificar e amadurecer as ideias, tornando assim cada sessão mais rica e intensa.
Surgindo o terapeuta como um guardador de percursos, o seu interlocutor confronta-se necessariamente com a sua própria identidade e com a imagem de si que vai construindo no curso das sessões, aspecto que é extremamente importante na terapia.
Para além da sua disponibilidade, e como anteriormente referido, o terapeuta conversacional deve ter uma sensibilidade apurada no que diz respeito às dimensões verbais e não verbais do discurso. Deve, além do mais, saber colocar a sua capacidade de leitura ao serviço da interação, não para impor seja o que for, mas para permitir abeirar o que é merecedor de foco e de atenção. A sua interação deve ser sempre uma co-construção e dela deve resultar uma compreensão partilhado que incentiva o aprofundamento dos assuntos em questão.
Por outro lado, e dada a articulação dos problemas individuais com o mundo em que vivemos, o terapeuta conversacional deve ser uma pessoa informada, com bagagem cultural ampla e com uma perspetiva histórica, sociológica e filosoficamente consolidada sobre os tempos em que vivemos. Sem essas características ele dificilmente poderá atuar de uma forma estimulante, bem enquadrada e possibilitadora de um alargamento de horizontes, aspeto relevante na terapia conversacional.
Deve ainda o terapeuta conversacional ser um bom comunicador, revelando-se hábil tanto na arte da palavra certeira quanto na gestão adequada dos silêncios. Nunca se deve esquecer que a comunicação implica a escuta e que desta fazem parte três dimensões importantes: a escuta de conteúdo, essencial para desenhar e identificar os focos problemáticos que emergem dos assuntos, a escuta empática, que gera uma moldura relacional propicia à interação e ao seu prosseguimento e a escuta crítica, imprescindível para que se efetuem questionamentos, suscitem confrontações e se proceda a avaliações.
A identificação de focos problemáticos causadores de desequilíbrios é um dos momentos cruciais na terapia conversacional e, por isso, o terapeuta deve compreender os movimentos de nuclearização e de pereferização através dos quais estes ganham forma e expressão. Não porque o terapeuta deva ter soluções ou receitas, mas porque ele deve centrar a interação no aprofundamento desses problemas. Conferir-lhes um enquadramento mais alargado, indo para além do ponto de dor, é essencial para poder lidar com eles. «Desenriçar» os seus capilares e converter em arquipélago o que parecia um único núcleo é também essencial para se ganhar perspetiva. Fazer variações imaginativas ajuda, por sua vez, a flexibilizar a mente e a criar alternativas que ajudam a desdramatizar e a descentrar. Ganhar agilidade e mobilidade conceptual quebra a rigidez em que muitas vezes se cristalizam os problemas. Estimula, por outro lado, a coragem para inventar caminhos em que deixamos de pensar contra nós mesmos e aprendemos a dar uma conotação emotiva e pessoalmente favorável aos nossos modos de pensar.
Enfim, o terapeuta conversacional deve ter especial atenção aos ritmos próprios de cada um para que a progressão possa fluir sem descompassos prejudiciais. O sentido do tempo e da oportunidade justa para interagir devem fazer parte da sensibilidade que o terapeuta desenvolveu através da sua formação, das suas práticas e da sua experiência de vida.
Através das competências referidas — e de outras aqui não enumeradas— a terapia conversacional deve ser praticada como uma arte da hospitalidade e do encontro, como uma prática de descoberta desafiante que promove transformações positivas, como uma via que abre caminho a processos de crescimento integral e como uma rota de conquista acompanhada com vista a um processo de equilibração que se tornou importante e premente.

(Post 24) O que se está a passar?

A questão persegue-me desde o início, e já lá vão quatro semanas de confinamento. Destituíram-me da capacidade de saber se estou ou não doente (neste caso específico, de poder ter a certeza de estar ou não infetado) e de agir em conformidade. Ao declarem-me ignorante (e o problema não é sê-lo ou reconhecê-lo, mas ser declarado por alguém) abrem-se as portas para ser tratado como um menor, tornando-me mais uma cabeça de gado que assim se junta à manada a ser “cuidada” pelos boiadeiros governamentais (replicados por um coro de cidadãos amedrontados, amplificados moralista e paternalisticamente pela matraca da comunicação social e obrigados à confinação espacial pelo aparelho repressivo do Estado, suas encenações e atuações de vigilância e punição).
A coisa tem força porque é uma expropriação coletiva permitida pelo medo e pela ignorância, pelo acenar do espectro da morte (essa certeza constantemente recalcada) e por um movimento de arrasto de grande poder. E tem também força porque, na senda do individualismo instalado, ela permite atomizar e encerrar cada um na sua própria célula. Porque é que ninguém pensou em fazer circunscrições comunitárias? Em vez de encerrar cada um nas suas casas, poder-se-ia alargar a unidade ao bairro, ao quarteirão, à vizinhança de proximidade. Fazer uma resistência comunitária, prudente, atenta mas corajosa. Tal como o fazem em grupo, por exemplo o grupo de pessoas que trabalham nos hospitais e que têm de confiar uns nos outros e que são intitulados, e bem, como «indispensáveis». Mas, não seremos todos indispensáveis? Fomentar relações de confiança em vez de desconfiança. Apelar ao discernimento, à responsabilidade e entreajuda comunitária de proximidade em vez de fomentar a ideia de reclusão individual. Descentralizar e deixar vir à tona a capacidade de auto-organização das comunidades unidas por objetivos comuns e sem prescindirem de ser comunidade. Esta é a única saída para não vermos a vida bloqueada e, simultaneamente, para evitarmos ficar expostos à paralisia social generalizada. De facto, ela não é tão generalizada assim, apenas o é para a grande maioria dos que são considerados dispensáveis ou apenas indispensáveis para serem orientados e cumprirem. Estamos nos antípodas do «ousa pensar» kantiano. Para muitos, hoje, o slogan implícito é «não ouses pensar» pois para pensar «estão lá eles».
Parece-me claro que tudo isto aponta para a insustentabilidade da expropriação do poder autárquico das pequenas comunidades e para a manutenção de um estado de subserviência em que nos temos de ver como governados e obedientes aos especialistas. E isso é um perigo maior do que qualquer vírus que ande por aí. Bem sei que quando o foco se estreita em excesso, num movimento metonímico que toma a parte pelo todo e acaba por lavar à perda da capacidade de por em perspetiva, toda a voz dissonante do coro de ventríloquos é votada ao ostracismo. E, no entanto, reitero: o que assinalei é um perigo maior do que qualquer vírus que ande por aí.

(Post 23) Ocaso do pensamento na sociedade contemporânea

Em torno do livro Pensar em tempos de não-pensamento. Notas para uma analítica do brutal na contemporaneidade (Coimbra: Grácio Editor, 2019), de Rui Pereira

Por vezes impõe-se levar a cabo o exercício de organizar um conjunto de incredulidades existenciais cuja acumulação — caso não procuremos lançar sobre isso alguma inteligibilidade — se constitui como uma força de não-pensamento que tende a diluir-nos na impotência.

É esse, de um modo global, o exercício desenvolvido em Pensar em tempos de não-pensamento (livro originado numa série de conferências realizadas na Biblioteca Pública de Gondomar, em 2018 e publicado por Grácio Editor em 2019), no qual Rui Pereira procura caracterizar os tempos e o mundo em que vivemos, deslindar a sua gramática, mapear mecanismos e consequências das transformações que a eles conduziram e, praticando a reflexão crítica, convidar os leitores a confrontarem-se com a ideia de que vivemos em tempos de não-pensamento.

As etapas do percurso através do qual o autor argumenta a tese do ocaso de pensamento na sociedade contemporânea, antecedidas por uma apresentação e procedidas por uma síntese, são cinco.

A primeira parte intitula-se «A coisa» e nela é apresentada a tese já referida, afirmada aliás a contracorrente das propaladas ideias segundo as quais vivemos numa evoluída sociedade de informação e de conhecimento. Com efeito, a epígrafe de Edgar Morin, ponderadamente escolhida para abrir esta primeira parte, utiliza a expressão «novo obscurantismo» e reflete bem o tom crítico e reticente com que é encarado o truísmo da sociedade de informação e de conhecimento. 

A segunda parte intitula-se «Fundações» e versa sobre o avanço da ideologia da sociedade industrial e sobre a instalação do mercado como critério hegemónico e fator de unidimensionalização do humano. 

A terceira parte intitula-se «Casa das máquinas» e, como o nome indica, aí se abordam os mecanismos diversos que moldam as práticas sociais e dão forma à sociedade atual.

A quarta parte intitula-se «Gramática» e debruça-se sobre as regras das formações ideológico-discursivas que operam na configuração dos regimes de alienação e de não-pensamento. 

Por fim, a última parte intitula-se «Pensar» e a epígrafe que a anuncia, de Alastair MacIntyre, é esclarecedora: «O que nos oprime não é o poder, mas a impotência». Nesta parte vislumbra-se a confluência entre o esvaziamento do pensar e a decadência da dimensão ética na consideração das coisas humanas. Com efeito, na perspetiva de Rui Pereira, o não-pensamento e o embrutecimento do humano estão estreitamente ligados à desvalorização, e mesmo à expulsão, das considerações éticas das cogitações humanas. A adiaforização da ética ou a des-eticalização do pensamento andam a par do caráter unidimensional da racionalidade instrumental e da «ideologia de linha branca» veiculada pelo capitalismo liberal.

Referidas de uma forma sintética as etapas deste livro, mais do que expô-las em detalhe, optarei agora por fazer algumas reflexões, pensando com e partir do que o Rui Pereira escreveu, ou seja, preferirei explorar as afinidades que encontrei e dar vazão ao empolgamento contaminante que a leitura deste livro me proporcionou.

O não-pensamento que caracteriza a sociedade contemporânea (e cuja compreensão emparelha, na presente obra, com o esforço de delinear uma analítica do brutal) deve ser considerado, por um lado, como algo que deriva de metamorfoses sistémicas que estão na base da sociedade contemporânea e, por outro, de uma crescente incomensurabilidade entre prática e teoria, ação e pensamento reflexivo, modos de vida práticos e princípios e valores reguladores, sendo que são a teoria, o pensamento reflexivo e os princípios e valores reguladores que vão enfraquecendo num misto de paralisia, anestesia e disfuncionalidade. 

Com efeito, nos tempos atuais os requisitos do pensar meditativo vão sendo diluídos por fatores como: 

– a aceleração imersiva dos ritmos mundanos e a mobilização constante que eles impõem; 

– a avalanche da informação e a atrofia da memória;

– a migração para o digital e o refúgio num mundo dito «virtual»;

– a espetacularização mediática do que quer que seja e a mediocracia;

– o agorismo;

– o consumismo;

– a organização fragmentada, anonimizante e vertical das instituições em detrimento da participação comunitária;

– o individualismo;

– a tecnologia e o fascínio pelos meios como fins em si mesmos;

– a omnipresente invasividade publicitária com a correlativa rendição do humano a uma condição de comerciante;

– a desmultiplicação constante num caldo de possibilidades infinitas do qual a contradição, bem como a distinção entre o essencial e o supérfluo, se parece ter ausentado;

– o silenciado medo da solidão e da morte que atravessa a submissão resignada ao mundo do trabalho penoso;

– enfim, toda uma falta de sentido afogada em distrações de aparência feliz, num irrelevante efémero travestido de esplendor, numa ânsia de obter respostas sem ter de padecer o ato de perguntar e de questionar. 

O tempo do ócio (do ócio criador, terreno para movimentos de apropriação e de interrogação) tornou-se insuportável, os ecrãs em que mergulhamos repetidamente a atenção são refúgio para o horror do vazio, o espaço do não-saber tornou-se odiosamente incómodo, o saber que substituiu-se às incógnitas, aos questionamentos reflexivos e à consideração dos limites que o saber de implica e tem de contemplar se, mais do que conhecimento e informação especializada, quiser ser também sabedoria ligada às questões do sentido da vida e da orientação existencial.

É importante salientar que, no conceito de liberdade (fermento do pensamento), se dissociaram atualmente dois elementos sem a conjunção dos quais a liberdade passa a ser mais um nome do que uma força. Refiro-me às noções de escolha e de criação. Quando à liberdade é retirada a possibilidade da cada um poder criar hipóteses que não as alternativas apresentadas para escolha, acabamos por desligar a noção de liberdade da de autonomia e substituímos a noção de responsabilidade pela de sujeição cúmplice, tão presente no vulgarizado oráculo segundo o qual «temos de nos adaptar». Com efeito, ao reduzirmos a questão da liberdade à questão da escolha, abrimos para uma conceção instrumental que gradua entre pior e melhor—  como aliás o faz qualquer consumidor comum na escolha de um produto — e relegamos sempre para depois a consideração de valores, exigências utópicas e responsabilidades últimas em detrimento de critérios apenas assentes na comparação útil e em finalidades imediatas e pragmáticas. 

A diluição em critérios meramente comparativistas torna ociosa a questão dos princípios, ou seja, faz desaparecer a idealização axiológica do dever ser que pulsa na dimensão ética do pensar (e que contribui decisivamente para que alguém seja mais do que uma entidade de arrasto). A ética torna-se coisa de perdedores e de inadaptados ao mundo real, um mundo em que a função vinculativa da linguagem (aquela que fomenta a vida comunitária pela geração de laços de confiança) vai esmorecendo e, com ela, a responsabilidade do falar, do dizer, do prometer e, consequentemente, do comprometer-se. 

Escreveu Zygmunt Bauman em Modernidade e Ambivalência que «o farfalhar de palavras secas, sem seiva, nos recorda incessantemente e de forma intrusiva o vazio que está hoje onde antes estava a esperança». Rui Pereira fala também do discurso vazio como a formação discursiva que rege os nossos tempos, tempos em que o direito à opinião se sobrepôs à questão da qualidade das opiniões e, mais ainda, à arte do diálogo implicada na interação argumentativa. 

A deterioração da racionalidade argumentativa está associada a vários fenómenos: por um lado, à crescente  indisponibilidade para ouvir e para corresponder a partir da escuta; por outro, à exaltação do competitivo relativamente ao cooperativo; por outro, ainda, à inflação da expressividade comunicativa e opinativa (o importante é expressar uma opinião e mostrar que se tem opinião, e não aferi-la, sujeitando-a a discussão); por fim, à diluição da noção de razão numa equivalência opinativa de direito que clama pelo respeito universal por qualquer opinião sem considerar o grau de sustento cognitivo que a acompanha, o que leva a que invariavelmente haja confrontação de pessoas em vez de discussão de assuntos, com o correlativo descrédito da inteligência e da prudência.

A tudo isto acresce que a educação se tornou cada vez mais um adestramento para a produção e não algo de potenciador do desenvolvimento integral do indivíduo e centrado em aprender a tornar-se melhor, mais solidário e mais emancipado.

Fruto de uma vontade de poder e de controlo, de uma vontade enraizada em medos ancestrais e projetada num ideal de dominação da natureza (conducente, afinal, à predação da natureza), a matriz epistemológica da nossa civilização avançou na captura da realidade pela via da mensuração e do tratamento matemático da informação, originando não só uma quantofrenia generalizada como também uma crescente subordinação a ditames algorítmicos. 

Passámos a alimentar-nos na manjedoura «internética», somos subjugados pela comunicação unilateral dos cabrestos informáticos — vulgarizados com o nome amigável de «plataformas» (que proliferam onde se torna necessário organizar o que quer que seja de um modo supostamente impessoal e eficaz) — e substituímos as mediações baseadas na empatia e na solicitude por formulários sem rosto nem interlocução ou por redes de comunicação à distância. Tal como no caso da produção e da organização do trabalho a tendência é reduzir ou tornar residual o humano, também hoje o mesmo acontece com a progressiva, e sempre realizada de forma ambígua e sob a bandeira do progresso, desumanização das relações humanas. 

O mundo, capturado pela medida e pelo número enquanto critérios de objetivação, ampliou-se para esferas micro e macro, inacessíveis sem próteses tecnológicas, sirvam estas alcançar o que de outro modo seria invisível ou para processar dados e informação. Seja como for, esta expansão criou uma desproporção relativamente às capacidades naturais dos indivíduos da espécie humana. Com efeito, a massificação e o primado do quantitativo produziu uma desproporção só gerível por próteses tecnológicas e processamento computacional, configurando uma ordem pós-humana que subordina os indivíduos (agora chamados «utilizadores») à funcionalidade de sistemas anónimos e os confina a um estado de ignorância perpétua explorada pelos comerciantes de alta patente dos nossos dias: os especialistas. Sobre isto escreveu Zygmunt Bauman, na obra já citada: «os serviços especializados oferecidos diretamente ou embutidos em bens de consumo figuram no mundo moderno primariamente como mercadorias; ao mesmo tempo que servem às necessidades do consumidor, também trazem lucros para os agentes que os comercializam», acrescentando que «a competência especializada promete aos indivíduos os meios e técnicas para escapar da incerteza e ambivalência e assim controlar suas próprias vidas. Ela apresenta a dependência face aos especialistas como uma libertação do indivíduo, a heteronomia como autonomia».

A fórmula é antiga: o enfraquecimento e a indigência controlados, a par da indústria do medo que coloca a existência sob alarme perpétuo, geram dependência e propiciam a servidão voluntária e o consentimento na manipulação. No mundo atual, no qual o conhecimento foi capturado pelo mercado e a realidade parece ser cada vez mais significada através do recurso ao valor simbólico acrescentado, assistimos a uma  incursão que deixa os indivíduos simultaneamente mais livres, mais inofensivos e mais impotentes.

A terminologia da formação discursiva de que o pensamento mundano se torna ventríloquo é significativa —  flexibilidade, mudança constante, imprevisibilidade, desmultiplicação de possibilidades, produtividade, plasticidade — enfim, tudo é work in progress, fluido, reversível, mutante, passageiro, líquido. E, certamente, nada é só uma coisa. Tudo pode ser visto de várias perspetivas sem que entre elas haja necessariamente contradição. Enfim, tudo é ou pode ser — como diariamente nos ensina a publicidade — n em 1. Todos saímos a ganhar no modelo win-win do expansionismo consumista!

E, no entanto, tudo isto a custo de fazermos do futuro o caixote do lixo do presente, de hipotecarmos a esperança e de mortificarmos modos de vida através, entre muitas outras coisas, da precarização laboral, da privatização da existência, do recurso constante a simulacros (com a progressiva substituição de laços por conexões em redes ditas «sociais» e de acessos assistidos tecnologicamente e geridos por empresas privadas), da busca do prazer através de sensações planeadas e da crescente exposição à tirania do entretenimento. Por outro lado, a omnipresença da lógica do mercado torna a publicidade num género educador que forma mentalidades, promovendo a normalização do negócio da captura da atenção e, simultaneamente, operando a conversão do humano em produto sujeito às leis da oferta e da procura.

Rui Pereira insiste no seu livro em referir que hoje se instaurou o primado da irrelevância e do fait divers. Com efeito, num ambiente mental fragmentado e regido pelas ideias de que tudo é possível, de que tudo está em constante mudança e de que tudo tem um curto prazo de validade (com relógios a fazerem contagem decrescente), os projetos de vida e de longo prazo cedem a uma dinâmica apostada em aproveitar oportunidades, como aliás bem espelha a atual forma de promover vendas com descontos em permanência e com arredondamentos ridículos e, todavia, eficazes quando a eles se lhes junta a vontade de comprar do consumidor.

Em suma, e retomando as palavras de Walter Benjamin, Rui Pereira constata que na base do atual estado de não-pensamento está todo um empobrecimento da experiência a que corresponde, na realidade, uma expropriação do horizonte interrogativo com que se inicia qualquer caminho de reflexão. Com efeito, com a ausência de esperança, de promessa e de potência transformadora, a fuga para uma vida constantemente fora de si tornou-se o mais procurado lugar de conforto e de resignação, um lugar onde se está sempre de passagem, numa espécie de turismo existencial em permanência, sem vínculos profundos e o mais possível livre de ónus e de confrontos e reflexões complicadas. Eis a resposta que, misturando impotência e indiferença, promove o ocaso do pensamento e cria uma couraça contra uma brutalidade cujo excesso conduz a um «não querer saber». Em suma, as condições requeridas para pensar — segundo Rui Pereira: tempo, ideia e sentimento  — parecem ter-se ausentado da nossa existência. 

Vem aliás de longe a tendência para encarar o pensar filosófico como algo de inútil e o positivismo traçou-lhe mesmo o destino dizendo que os avanços do conhecimento científico o tornariam residual e em vias de extinção. Embora o catecismo positivista tivesse sido alvo de muitas críticas, a profecia da sua ideologia concretizou-se numa sociedade que acumulou dispositivos de desvalorização e impossibilitação do pensamento reflexivo e crítico. Da possibilidade da colocação de questões e do exercício do questionamento passámos rapidamente a um regime de perguntas feitas para terem respostas e, em seguida, a exigir respostas sem ter que perguntar para, finalmente, nos limitarmos a selecionar entre respostas já dadas. 

Ora, é para este estado de ventriloquismo intelectual, para esta incapacidade de resistir e de fender o muro do já-dito, do já-pensado, do já-feito e da sinonímia «tudo = nada» pela qual se pautam os tempos em que nos é dado viver, é para tudo isso que Rui Pereira chama a atenção neste livro. 

É que, direi para concluir, a parte autodidata de cada conquista — aquela que ninguém pode fazer por nós, aquela que deixa marcas inscritas, vincula ao sentido e nos coloca em sentinela — é requerida para reforçar a significação das aprendizagens e a esperança no poder libertador e transformador de um agir que pensa e de um pensamento que age. 

Em suma, resta a tarefa de pensar, tarefa que consiste antes de mais em assumir o papel de guardião dessa possibilidade, ou seja, em mantê-la em aberto, em dimensionar todo o saber com a proporção do interrogativo, de interrogações que, pairando com a sua inquietação, impedem o apagado da atitude vigilante e curiosa.  

O presente livro, instrutivo a todos os níveis, é justamente uma provocação destinada a atear a chama do pensamento, a envolver os leitores e a contagiá-los para que também eles possam embarcar na aventura de um perceber outro; e é também, sem dúvida, uma forma despojada de procurar fazer comunidade, uma comunidade sem o reforço da qual não resistiremos ao sequestro que quotidianamente nos atinge, uma comunidade sem a qual nunca passaremos de palradores e meros espectadores do nosso próprio destino.

Coimbra, agosto de 2019

Mercado de trocas — a propósito da economia inclusiva

Vivemos num mundo desorientado e cada vez mais afastado do sentido comunitário da coexistência humana.

Um certo filósofo polaco distinguia entre três formas de coexistência: o existir-ao-lado, o existir-com e o existir-para. Vale a pena debruçarmo-nos um pouco sobre cada uma delas.

A primeira modalidade caracteriza-se por ser uma forma de contacto fragmentário, circunstancial, ad hoc e inconsequente. Na realidade, estamos inevitavelmente cercados por outras pessoas, em contacto com elas e temos de lidar com isso sem que contudo haja qualquer tipo de dedicação da atenção para além do estritamente convencional, funcional e socialmente correto.

No entanto, por vezes os contactos podem propiciar uma seleção que nos faz transitar do estar-ao-lado para o estar-com. Dito de outra forma, dispensamos a nossa atenção a alguns e com isso entramos numa esfera de coexistência mais apertada. No entanto, embora não seja tão instrumental como a anterior, é de certo modo calculada e possui uma dimensão defensiva. Proporciona partilhas de conveniência mas os contactos são intermitentes e não vinculativos.

Já o existir-para cria o laço emotivo de filiação que torna impossível a indiferença e, por isso, resiste a toda a objetificação. Cria uma paridade auroral, uma união de cuidados, um caminho comum a percorrer conjuntamente, uma responsabilidade gratuita.

Destas três formas de coexistência, a primeira foi a que se tornou mais representativa na sociedade contemporânea na qual o indivíduo foi privatizado.

O estado de guerra permanente que essa privatização gerou mandou a ética para o exílio e expropriou gradualmente o humano da gratuidade e da comunidade. Ou seja, fez sair da caixa de Pandora a indignidade que transforma as privações, também elas, em coisa privada.

A lógica da exclusão vem de longe e consiste numa estratégia de poder alienante e desumanizadora. Ela tem a sua realização plena da desautorização social do gratuito, ou seja, de uma partilha sem outro motivo que os imperativos não racionais do modo de coexistência do estar-com. Estar porque sim. Porque não sou indiferente à minha responsabilidade para com o Outro e porque na dinâmica do dar e receber podemos sentir a proximidade de uma ajuda que antes de mais me gratifica a mim mesmo na medida em que sou para os outros.

Aquilo que aqui é praticado no mercado de trocas é uma valiosa maneira de retornar a esse magma onde a dignidade da pessoa se eleva por cima da mercantilização generalizada movida pelo lucro. Onde, enfim, o lucro se torna ocioso, permitindo o resgate de uma coexistência que não obriga a desviar o olhar, mas a querer encontrar um sorriso no rosto a quem dedicamos incondicionalmente atenção.

Certeza e confiança

Os tempos conturbados e desorientados em que vivemos refletem uma crise de racionalidade que não é sem relação com os ideais característicos da modernidade e, mais precisamente, com a ideia de ciência que aí se forjou.

Uma das grandes bandeiras da ciência moderna é a aliança do conhecimento e do poder. Trata-se de um projeto de dominação da natureza e da realidade através de meios que permitam o seu controlo e manipulação. O conhecimento científico é justamente um conhecimento de procedimentos certificados pela capacidade que o homem demonstra para moldar e interferir nos nexos de causalidade. O ideal de cientificidade é um ideal de obtenção de certeza e de eficácia, as quais podem ser produzidas com a invenção de plataformas de objetividade. A mais convincente dessas plataformas de objetividade revelou-se na mensuração, na quantificação, na tradução numérica da realidade. Foi por esta via quantofrénica que a ciência moderna seguiu e nela permanece.

Um dos mal-entendidos que persiste na interpretação do conhecimento científico é a ideia de que ele corresponderia à realidade, de que seria um espelho do mundo através do qual curiosidade humana se satisfaria. Mas, como referimos anteriormente, aquilo a que ela de facto corresponde é a medos, inseguranças e ansiedades ancestrais que se expressam numa vontade de poder, de controlo e de dominação. A realidade construída pela ciência é um espelho dos nossos desejos de manipulação da natureza, não um espelho do seu funcionamento enquanto tal. A realidade construída pela ciência anda às ordens da certeza e da eficácia e tudo molda para que estas possam ser produzidas, recalcando o que se revele ambivalente e o que possa gerar incerteza.

Escreve Zygmunt Bauman em Modernidade e Ambivalência (p. 50):

«A ciência moderna nasceu da esmagadora ambição de conquistar a Natureza e subordiná-la à necessidades humanas. A louvada curiosidade científica que teria levado os cientistas ”aonde nenhum homem ousou ir ainda” nunca foi isenta da estimulante visão de controlo e administração de fazer as coisas melhores do que são (isto é, mais flexíveis, obedientes, desejosas de servir). Com efeito, Natureza acabou por significar algo que deve ser subordinado à vontade e à razão humanas — um objeto passivo de ação com um propósito, um objeto em si mesmo desprovido de propósito e, portanto, à espera de observar o propósito injetado pelos senhores humanos. O conceito de Natureza, na sua acepção moderna, opõe-se ao conceito de humanidade pelo qual foi gerada. Representa o outro da humanidade. É o nome do que não tem objetivo ou significado. Despojada de integridade e significado, a Natureza parece um objeto maleável às liberdades do homem».

O avanço da ciência, desde a modernidade nascente até à modernidade tardia que é a nossa, concentrou-se obsessivamente na ideia de certeza, numa certeza utilitária que nos permite intervir eficazmente. Esta concentração pressupôs, contudo, uma estratégia de fragmentação constante (dividir, isolar e especializar, sempre e cada vez mais, para solucionar) cuja virtude reside em permitir absolutizar essas certezas e tornar infalível a eficácia. É verdade que são certezas insulares, produzidas graças a cuidadosas delimitações do objeto de estudo mas, dentro do paradigma, revelam-se funcionais nas suas potencialidades manipuladoras. O reverso negativo desta estratégia é que o processo de fragmentação produz um novo caos. Faz-nos navegar num mar de partes ao mesmo tempo que inviabiliza percecionar o todo. Fornece-nos eficácia, mas torna-nos carentes de sentido. Oferece-nos certezas, mas deixa atrofiada a nossa capacidade de gerar confiança através de argumentos que, como Cícero dizia, são «algo de provável inventado para criar confiança».

Deste modo, aquilo que a certeza proporciona — ou seja, o suposto descanso daquilo que queremos tomar por «solução» — acaba por voltar, qual regresso do recalcado, sob a forma da tormenta, da falta de sentido, da desorientação e da perturbação. É essa a consequência direta do privilégio dado à abundância de meios e do adiamento a que constantemente se vota a pergunta pelos fins.

Voltando à crise de racionalidade, direi que ela traduz justamente o desprezo por uma confiança que nunca nos dá garantias suficientes para apaziguar as nossas ansiedades (mas que é contudo vital do ponto de vista da comunidade humana, dos laços de vida construídos uns com os outros), em detrimento da idolatria da certeza como porto seguro para as nossas fragilidades.

Afigura-se-me, no entanto, que só há verdadeiramente segurança quando esta tem por base a confiança, não a certeza. É certo que, de um ponto de vista das garantias — e hoje todos exigem garantias que não existem, como se a segurança não coexistisse sempre com o risco — a confiança parece ser um parente pobre da certeza. Mas a confiança, com a esperança que envolve, é aquilo que verdadeiramente dimensiona prudencialmente a vida humana na sua condição histórica e finita e também aquilo que pode moldar com sentido as comunidades humanas na parte do percurso que lhes cabe trilhar.

Gerar a confiança é um trabalho lento e sempre frágil. Implica, acima de tudo, que a atitude ética se sobreponha à manipulação do que, ao ser demarcado como um outro excluído ou a excluir, a objetividade trata como coisa. Se assim acontecer, talvez possamos viver uns com os outros e uns para os outros e não em estado permanente de guerra ou como reféns enlouquecidos por uma obsessão de controlo que nos nega e que sacrifica a liberdade à miragem de uma segurança sem mácula.

O contrabalanço à racionalidade instrumental que herdamos da modernidade, e que hoje resplandece, reside, diz-nos Bauman (p. 62 da obra anteriormente referido), no «pluralismo do poder» que, descentralizando e diversificando as fontes autorizadas, possibilita a discussão, a confrontação e a ponderação de alternativas, remontando da ansiedade pela certeza e pela estabilidade às questões da confiança e, nesse mesmo passo, fazendo com que a ética retorne do seu exílio forçado.

Os colaboradores

Na nossa sociedade competitiva, os empregados passaram a ser colaboradores. Dá-se assim uma imagem cooperativa do trabalho que seria, sem dúvida, desejável para todos, mas que nada tem a ver com a ideologia neoliberal que os explora impiedosamente.

O termo «colaborador» rima bem com a condição de precariedade que hoje permite dissociar a dignidade da necessidade de subsistir através do trabalho. Ainda por cima, o colaborador — e a palavra até parece incluir a autonomia de um ato de vontade — tem que se converter e vestir a camisola.

Os seus corpos fardados fazem parte do pacote. A sua instrumentalização estende-se ao receituário comportamental que têm de seguir à risca e à linguagem formulaica de que não devem ousar fugir.

Adestrados para os procedimentos e para a imagem que devem exibir, despersonalizados de qualquer característica própria que estão proibidos de mostrar, os colaboradores têm de sorrir e tratar bem os clientes. E estão sujeitos a uma avaliação através da qual são constantemente monitorizados.

As suas vidas (vidas?) devem esgotar-se no consumo e nas suas obrigações de trabalho e para isto contribui o aumento de horas que devem disponibilizar e a exigência de flexibilidade que os fazem viver de plantão para o trabalho e de escape na miragem do consumo. Tudo, menos ter margem para comandar a sua vida. O colaborador deve ser dócil e subserviente e mostrar agrado e gratidão.

O colaborador sabe que é facilmente descartável. A sua relação de trabalho tornou-se, também ela, uma simples conexão (eventualmente) legal, sem vínculos ou laços humanos. A contenção do silêncio assenta-lhe bem. Deve comportar-se como profissional e submeter-se à hierarquia dos acessos que os cabrestos informáticos lhe impõem.

Hoje também é usual chamar-se aos colaboradores «assistentes operacionais» e, nas classificações profissionais, proliferam os «técnicos». É o trabalho na era da informática.

Para os deslumbrados, isso é sinal de progresso, mas para muitos — e para mim também — é um sistema de descriminação sem precedentes no seu cinismo e no silêncio com que pratica a exclusão.

O fascínio pela ordem infalível e pela eficácia sempre foi perigoso. E mais perigoso se tornou quando a sua manutenção se associou indelevelmente ao funcionamento maquínico e a processos formalizados que condenam o homem a uma condição inultrapassavelmente servil, temente da liberdade e despojado de qualquer ideia de libertação.

Hoje há ecrãs entre os olhos nos olhos.